Checou o relógio mais uma vez. Tinha esperança. Se olhasse fixamente para os ponteiros, eles eventualmente andariam mais devagar. O movimento do contador é rítmico. Preciso. Irritante. Cada vez que ele não tardava em se movimentar, um minuto a mais teria que ser explicado. Até os quinze minutos, poderia nada dizer. As pessoas não tendem a causar alvoroços por causa de quinze passos do relógio. Um. Dois. Três. Quatro. Um. Dois. Três. Quatro. Umdoistrêsquatro. Porém, muito precisa ser explicado em nome das considerações alheias quando esses quinze passos acabam se multiplicando por quatro. Que indecência, contador! Uma volta inteira de atraso. A partir daí, o outro não encontra mais justificativas sozinho. Além disso, não é mais possível culpar o lento elevador ou o passo das pessoas na rua. Soa canalha também dizer que o trânsito ou a chuva, hoje o dia está lindo!, foram terríveis obstáculos à pontualidade. O contra-argumento, falta de planejamento!, já habita a ponta da língua. Aqui, nesta cidade, o trânsito é tão parte da rotina cidadã quanto respirar.
A única saída, portanto, seria ser portadora de notícias graves e imaginárias. Porém, não se pode alegar algo que rapidamente seja descoberto como mentira, por exemplo, a morte de um parente. É preciso que a lorota esteja nos limiares da (im)possibilidade, como a indisposição de uma avó. A indisposição de uma avó é sempre argumento socialmente aceito para um atraso. Ninguém é desprovido de humanidade a ponto de deixar uma avó indisposta e sozinha em casa. Também está para nascer pessoa que proteste contra o atencioso gesto de se cuidar de uma avó. Mesmo que ele resulte em atrasos de qualquer natureza.
Um plano perfeito. Bem na hora! O suor dentro da roupa estava começando pinicar os pelos e abafar as axilas. Porém, a insinceridade planejada, embora não apresente culpa, logo mostra suas manchas de incoerência. Se o motivo da balela vem do princípio nobre de não magoar os sentimentos de terceiros, como é possível esquecer a tão atenciosa mensagem avisando do possível atraso por causa da indisposição da avó? Ora, isso terá de passar como excesso de preocupação. O zelo para com a avó foi tão grande que, no meio das tribulações, foram esquecidos o relógio e o celular. Esse que agora vibra. As mãos o acompanham em uma espécie ansiosa de repique. Deveria dizer que precisou levar a avó no hospital? É difícil responder onde está quando sabe que a resposta trará infelicidade. Talvez o silêncio traga menos insatisfação que uma resposta vaga como estou a caminho. Se alegar posteriormente que não viu a mensagem, não há como se provar o contrário. Imagine a quantidade de provas que são necessárias para ser possível afirmar, com segurança, que algo foi ou não foi visto por alguém. Parece uma tarefa para o impossível.
A mentira, embora socialmente tranquilizadora, tem efeitos exaustivos na cidadã comum. É preciso dizer comum porque existem pessoas a quem a culpa não gera nenhum remorso. Com os escrúpulos escassos, fala o que quer à vontade. Não é o caso na situação presente, e tropeça para fora do ônibus gritando com o motorista que errou o ponto. Já decidiu deixar a saúde de sua vó em paz e os hospitais sem sua presença ficcional. Corre riscos pela rua atravessando sem ver sinais ou faixas. Iria apenas se desculpar e perguntar se é possível deixar esse incidente – para culpar indiretamente o acaso – para trás e seguir com as atividades planejadas. Sobe as escadas. Afinal, aquela história da avó, embora muito tenha servido para matar o tempo, lhe deu uma enorme dor de cabeça.
Toca a campainha.
Texto de Samyres Amaral